Poesias Escondidas


Uma pequena demonstração do amor pela nossa língua e nosso idioma, mesmo quando a poesia ou a letra de música for de autoria de um estrangeiro, sendo ou não radicado no Brasil, só serão publicadas as traduções ( caso o idioma não seja a língua portuguesa )...

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Alma A Sangrar

Florbela Espanca

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?!...

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Quem Era ?

José Carlos Pinho Martins

Ele era um desafio
um desatino
uma faca afiada na ponta do lápis
acordes, harmonias e melodias,
estrábicas visões sonoras
dodecafonismo, atonalismo
musicismo teatral
a falta que voce me faz...

Feliz demais por te ouvir
diariamente
mesmo que no silêncio da tua voz
que infelizmente se calou há anos...

Itamar Assumpção !

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Aforismo Dos Quinhentos Anos

 Paulinho Assunção

O Brasil é um barco mitológico com quinhentos anos,
tripulado por gente com asas.
Gente com asas grandes, médias, pequenas
e gente com asas cortadas.

Querem uma teoria sobre o Brasil?
Pois aprendam a arte de observar os pés da multidão:
cada sapato é uma premissa,
cada pé descalço é uma questão.

E então?
Que abismo nos espera
depois que a grande farra do capital terminar
numa gigantesca ressaca?

É função do poeta brasileiro de quinhentos anos
despoetizar a poesia até o osso.
Toda a poesia poetizada está hoje na boca mole retórica da política,
incluindo aí a política dos poetas molemente poetizados.

Equivocaram-se os adeptos do pós isto, do pós aquilo.
Aos quinhentos anos, estamos e somos pré, pré-qualquer-coisa.

Uma teoria sobre o Brasil?
Pois: traçar uma linha evolutiva
entre as miçangas e os espelhinhos dos conquistadores
e os celulares dependurados pelo corpo dos brasileiros.

Esta paisagem nas esquinas, sob os viadutos,
paisagem de meninos e meninas, de homens e mulheres,
amontoados, dormindo:
o tal paraíso da carta de Caminha trazia um texto oculto,
profético e trágico, para ser lido só agora, quinhentos anos depois.

Ao meu filho de dois anos, eu digo,
sempre direi: jamais dê importância
a quem pensa e escreve com mandíbulas de ferro.

Ao meu filho de dois anos, eu digo,
sempre direi: desconfie da ira do manso
e da mansidão do irado.

Quinhentos anos:
ex-brasileiro, ex-estrangeiro,
que homem me vejo dentro do espelho?

Querem outra teoria sobre o Brasil?
Pois aprendam a arte de ver estes e aqueles, por aí, em algum lugar,
os que perderam o trem, mas continuam sentados
à espera do embarque na estação em ruínas.

Ou então,  aprendam a arte de ver estes e aqueles, por aí,
em algum lugar, os que se calaram depois do último combate
os que depuseram as armas e jogaram no lixo medalhas e condecorações.

Ou então, uma teoria
sobre o Brasil quinhentão poderia se assentar nesta imagem:
o trajeto-arco de uma nova idéia,
desde a sua eclosão até ser abatida a tiros em praça pública.

Quinhentos anos e não aprendemos isto:
é o modo de fazer o guisado, não o guisado;
é o ponto do doce, não a bandeja com o doce;
é o modo de temperar, não o tempero;
é o modo do beijo, não a boca nem o beijo;
é o modo de viver, é o modo de morrer.

Há quinhentos anos,
um barco tripulado pelas gentes tupiniquins
aportaria em uma costa qualquer da Europa
para mostrar ao europeu uma questão filosófica de base.
Esta: o trovão é o trovão é o trovão.

Quinhentos anos de História,
nenhum problema resolvido, sequer colocado.

Quinhentos anos:
os sabichões tardios, com as suas estéticas agônicas,
ainda reinventarão a bicicleta,
o bilboquê, a bolinha de gude.

Quinhentos anos:
os capitães-do-mato agora agem nas periferias metropolitanas.
Trocaram o bacamarte pelo fuzil.

Quinhentos anos:
uns milhões de escravos egípcios,
sob o chicote do faraó,
tentam empurrar a pirâmide-Brasil para o Primeiro Mundo.

Verdade das vaidades:
o tal paraíso da carta de Caminha
existe de fato nos sorrisos das colunas sociais.

Mas esse céu, esse sol, essas praias,
essas mulheres, esse carnaval, esse futebol,
esses automóveis, essa languidez
meu Deus, quem é que se ocupará da utopia?

Pergunta dos quinhentos anos:
ainda seremos anglo-saxônicos?

Fim de milênio e de cantar: a poesia, meninos,
se ainda há a poesia, é o idioma posto a pensar.

Balanço pessoal dos quinhentos anos:
sou especialista em nuvens,
especialista em entardeceres e amanheceres.
Especializei-me naquilo que é refugo,
naquilo que é insignificante para a ordem do mundo,
para a dita riqueza do mundo.

Conclusão dos quinhentos anos:
o Apocalipse, meninos,
o Apocalipse aconteceu várias vezes
e ainda existe muita pólvora estocada.

Conclusão dos quinhentos anos:
o Apocalipse, meninos,
o Apocalipse aconteceu várias vezes
e ainda existe muita pólvora estocada.

E foram dizer que eras grande, impávido, colosso:
agora só nos resta suportar o teu narcisismo incomensurável.

Com tamanha quantidade de automóveis-falantes,
de automóveis-pensantes, de automóveis-emergentes,
quem é que vai se ocupar do pé andarilho?

Dúvida dos quinhentos anos:
e se começássemos tudo de novo,
com um baile ou quem sabe uma quermesse?

As Palavras

Octávio Paz

Girar em torno delas,
virá-las pela cauda (guinchem, putas),
chicoteá-las,
dar-lhes açucar na boca, às renitentes,
inflá-las, globos, furá-las,
chupar-lhes sangue e medula,
secá-las,
capá-las,
cobri-las, galo, galante,
torcer-lhes o gasnete, cozinheiro,
depená-las, touro,
bois, arrastá-las,
fazer, poeta,
fazer com que engulam todas as suas palavras.


(Tradução: Haroldo de Campos)